Não estava conseguindo dormir. A ansiedade era demais, tanta que, quando raiou o dia, ainda não tinha conseguido dormir. Mas quem liga? Era meu aniversário de 10 anos! E minha querida avó Zeugma me prometeu que o presente desse ano ia ser bem melhor do que a coleção de pólvora do vovô que ela me deu no ano passado.
Ela entrou em meu quarto, carregando um bolo de café (o dia começou bem, hein) e uma caixa de presente bem grande. Minha vozinha se aproximou da cama, cantando “parabéns-pra-você”, me oferecendo a caixa, a qual eu furiosamente desembrulhei. Lá dentro estava um filhote de pitbull extremamente fofo. Era tão lindinho que até tinha uma espuminha branca na boca. Ele parecia nervoso, mas ao ver minha vó, pulou de alegria e resolveu dar um beijo nela. Só que a intensidade foi tanta que acabou saindo sangue do pescoço dela.
O terrível bolo que ela segurava caiu, ainda com a vela acesa, na pilha de feno, incendiando quase que imediatamente o quarto inteiro, explodindo a coleção de pólvora de meu avô, que fez metade da casa explodir, junto com o pitbull, que acabou despedaçado na parede. A vizinha fofoqueira, Dona Hipotenusa, assistia tudo da janela e, antes que a coleção de dinamites do ano retrasado também fosse alcançada pelo incêndio que tomava conta da casa, correu para dentro e me buscou, em seus braços ossudos, me carregando pro lado de fora antes da casa ir para os ares. Eu nunca gostei de bolo de café.
Dona Hipotenusa já tinha seus filhos: os irmãos gêmeos siameses Seno, Cosseno e a recém-nascida Tangente. Não podia cuidar de mim também, então depois de ser rejeitado pela proprietária do salão de beleza local, Srta. Melanina, minha corajosa heroína, sempre muito crente, me colocou no Orfanato Pé do Filho, que também era extremamente religioso.
Ao contrário do que imaginava, ao invés de comer, rezar e amar, era o padre que me comia, rezava, mas não me amava. No primeiro dia de minha estadia no local, Padre Criptônio me flagrou tomando banho de porta aberta. Você sabe o resto. Desde então, passei a ser molestado diariamente.
Em um fatídico dia, Cauã Criptônio me levou para o armário do zelador e começou a fazer o que sabia fazer de melhor. Revoltado, durante o ato, agarrei uma furadeira elétrica. Quando consegui enfiar na tomada, ele também enfiou em mim. Pressionei o gatilho e botei a broca em suas... ferramentas, que começaram a vazar de tudo. O padre começou a gritar, atraindo os outros, que vieram correndo para ver o que se passava. Tranquei a porta e, para calar o homem, que tentava me impedir, fiz outro furo, dessa vez em sua orelha, de onde saíram pedaços de seu cérebro e muito, mas muito sangue. Não é que ele calou a boca?
Desesperados com a gritaria, os Padres Cádmio e Disprósio começaram a bater, esmurrar e jogar hóstias na porta. Eu tentei jogar o cadáver cheio de furos pelo basculante, mas entalou. Sem saber o que fazer, coloquei um saco de lixo sobre o corpo e, com uma caneta fosforescente que ali encontrei, escrevi as seguintes palavras: “Lixo tóxico. Não tocar, não carregar, não inalar nem nada”. Mas eu precisava explicar também porque todo aquele sangue. Não tinha outra opção: com uma machadinha que estava dando sopa numa das prateleiras, cortei meu dedo mindinho e abri a porta.
-Meu filho, o que aconteceu? – perguntou Cádmio, olhando para aquela cena atordoante.
-Eu cortei meu dedo sem querer.
-Mas o que raios você estava fazendo aqui?
-Brincando de índio. – respondi.
-Meu Deus, que desastre. Passa uma arnica, coloca um band-aid e boa noite, meu filho. – e, olhando para o Padre Disprósio, exorcista número um do orfanato, disse: - Amanhã é dia de levar o lixo tóxico para fora.
Fingi que voltei para cama, depois de estancar o sangue do dedo. Esperei os padres irem rezar a missa das duas da madrugada, voltando para o armário do zelador e cortando a prova do crime em pedacinhos com uma serra de ossos forense que encontrei ali mesmo no armário. O que será que o zelador andava fazendo com tudo isso? Então, atirei os restos mortais em cima de um carro branco que passava por ali. O motorista chamou a polícia, que chegou uns dez minutos depois, colocando um longo pano branco de seda, uma das mais finas de todo o Sri Lanka, para cobrir aquela nojeira e levar o que restou de meu molestador para o necrotério mais próximo. Analisaram os restos mortais de cima a baixo, e chegaram a conclusão chocante de que ele havia falecido, batido as botas, que eram lindas, por sinal: importadas das Filipinas, feitas com couro de dragão-de-komodo e manufaturadas por crianças escravizadas.
Os pedaços foram empacotados e transportados de helicóptero para o maquiador mais famoso e talentoso de toda Hollywood, para ter o rosto reconstruído, de acordo com o crânio quebrado, com a mais nova tecnologia 3D projetada especialmente para a ocasião. O maquiador trabalhou incansavelmente por 3 dias e 3 noites. Acaobou rejeitado pela esposa, que alegava que ele dava mais atenção ao trabalho do que ao seu relacionamento amoroso.
De qualquer forma, chegou à conclusão de que o rosto reconstruído era o do famoso ator Jack Nicholson. Assim que a notícia se espalhou pelo mundo inteiro, descobriram que o mesmo estava de férias em um cruzeiro de caridade nas Filipinas, ajudando o governo a substituir a mão-de-obra infantil escrava por aborígene.
Desolado, o grande maquiador resolveu roubar o que tivesse no defunto e fugir para o México, só que, em um dos bolsos de suas calças, foi achada uma carteira de identidade. O homem se suicidou depois dessa.
A investigação voltou para o orfanato assim que constataram de que o assassinado era o Padre Cauã Criptônio Jr.. Entrevistaram cada padre e freira, inclusive o Arcebispo da Paróquia. Vi e ouvi toda a cena por um buraco na fechadura da porta. Uma mulher gorda e negra, de cabelo curto e enrolado e aparência simpática, vestindo um terno feminino apertado demais para ela - o mesmo terninho que causava pânico nas crianças do orfanato, pois pensavam que se tratava de uma assistente social - sentava na cadeira de palha trançada oposta à escrivaninha de madeira de carvalho do Padre Cádmio, que oferecia água à policial enquanto sentava com cuidado, levantando a batina para não sentar nela.
-O que você deseja, Senhora...? Ou deveria dizer, Senhorita... – disse ele, que não conseguia parar de encarar os mamais, realçados pela vestimenta, de LeShawna, que se assemelhava muito à Queen Latifa.
-Qual foi a última vez que você viu o seu companheiro Criptonita? – partiu direto para o assunto.
-Criptônio. – corrigiu Cádmio, deixando escapar uma baba pelo canto da boca, enquanto ainda apreciava a vista.
-Você está bem? – perguntou LeShawna, limpando a baba da mão. – Olha, se você tiver tendo um derrame, só pra avisar que minha última experiência com derrames não foi tão boa, foi até meio engraçado, sabe, eu acabei me casando com um aborígene sem querer em um ritual típico australiano, sabe, mas aí um dia você não vai acreditar quem ligou para ele... O Jack Nicholson, convidando ele para fazer um negócio lá nos cinemas, eu não sei direito, mas... – o Padre retomou a consciência, desviando o olhar de seu virtuoso busto e a interrompeu, respondendo a pergunta:
-Eu o vi pela última vez quando o falecido, que Deus o tenha, estava levando um órfão novato para o armário do zelador...
-Por quê?
-É como um ritual de iniciação do nosso abrigo, mas isso não importa.
-Você sabe se o Padre tinha algum inimigo, ou algo do tipo?
-Todas as crianças do orfanato.
-Por quê?
-Por causa do ritual de iniciação...
Saíram da sala, sem me perceber, para o armário do zelador, onde a chefa de polícia, LeShawna achou dois quilos de dinamite.
-Ahm, Padre, esses dinamites... Vocês, aqui do orfanato, tem uma licença para estocar todos esses explosivos extremamente voláteis e perigosos no armário do zelador de um Abrigo Infantil recheado de bebês, crianças, pré-adolescentes e adolescentes em geral?
-Sim, claro, a autorização está ali do lado da pilha de feno.
-Essa?
-Não, a outra. É, essa. – e, enquanto a mulher tateava o piso de madeira em busca dos papéis, ela pegou e levantou, com sua luva de látex branca, um dedo decepado. Obviamente, meu dedo. Eu deveria ter jogado fora. Merda. A policial torceu a boca e apertou os olhos, perguntando, com nojo, de quem era o dedo.
-Ah, é de um garoto totalmente nada suspeito que veio para o orfanato depois de sua casa ser incendiada. Ele estava aqui com o padre, até então vivo, na noite do desastre. Ouvi um grito vindo daqui. A porta estava trancada, mas quando foi aberta, era só o garoto brincando de índio com uma machadinha nesse lugar, que estava completamente sujo de sangue e tinha um saco de lixo tóxico entalado no basculante. Pelo visto, o garoto se acidentou com a machadinha.
LeShawna apertou bem os olhos, olhou para cima, pensativa, depois olhou novamente para o dedo, lamentando:
-Tadinho.
Ao saírem do quarto, me encontraram no corredor. A policial esbarrou em mim e caí no chão. Ela se agachou, me olhando por inteiro, segurando aquele dedo sangrento, e falou para mim:
-Me desculpe, menininho. Coitado de você! Esse dedo é seu? – então, sem mais delongas, me entregou o mindinho e saiu andando. Quando estava prestes a entrar no carro, hesitou e voltou, provavelmente porque percebeu a idiotice. Montou uma sala de interrogação improvisada no próprio armário do zelador, o qual não aguentava mais esse bando de gente o tempo inteiro num espaço que deveria ser só dele. O telhado estava quase caindo porque ele não conseguia pegar nenhuma ferramenta há dias. – Por que você estava brincando de índio naquela fatídica noite? – perguntou ela, me olhando diretamente nos olhos, debruçada sobre a mesa, com os peitos quase em minha cara.
-Porque índios são legais.
-MENTIROSO! – e ela me deu um tapa na cara. – Perdão! É que eu estou tão acostumada a fazer isso que agi sem pensar antes. Bem, mas por que você estava brincando de índio na noite em que o padre foi assassinado?
-Bem, por acaso ago... - e ela me interrompeu com outro tapa:
-MENTIROSO! – logo depois se desculpou novamente. LeShawna, que estava, obviamente, com uma TPM braba, se debruçou novamente sobre a mesa, me olhando de um jeito assustador, como se ela estivesse encarando minha alma. Finalmente, disse: – Eu tenho quase certeza que foi você, eu sinto que... – peguei um taser, uma arma de choque que curiosamente estava por ali e a eletrocutei. Saí correndo pelo orfanato, fugindo dos policiais subordinados de LeShawna, Theodoro e Apolo, que vieram atrás de mim, ao perceberem meu comportamento esquisito. Passando pelo portão e pisando na calçada, observei que era dia do caminhão de lixo tóxico passar. Sem pensar muito, já que era o único veículo da avenida em movimento naquele instante, agarrei nas barras de metal da traseira e fui, agarrado, junto do automóvel.
A Avenida era reta, o que deu tempo para os tiras entrarem no carro e partirem a toda velocidade atrás do caminhão. Com medo, estendi minha mão no ar, para me proteger do carro que poderia acabar me acertando. Para minha surpresa, a radiação do lixo tóxico com o qual eu entrei em contato foi tão forte que me alterou, e um jato de lava saiu do meu pulso, em uma explosão, derretendo o para-brisa na face dos dois policiais. O carro explodiu e foi pelos ares, esmagando uma velhinha aleatória do outro lado da rua.
Bem, isso é o que eu gostaria que tivesse acontecido. Na verdade, o único “superpoder” que eu consegui entrando em contato com aquele lixo tóxico foi câncer na laringe. A parte da frente da viatura foi empurrada contra a parte de trás do caminhão, que freou bruscamente, esmagando todos os ossos e nervos possíveis de minha perna esquerda que estava para fora, partindo-a em duas, estourando, derramando medula óssea pelo asfalto. Os médicos não conseguiram salvar minha perna. Grande surpresa. Eles ainda confundiram o membro inferior saudável com o esmagado e acabaram amputando o direito também. De qualquer jeito, paraplégico e com dez anos de idade, fui enfiado em uma prisão para sempre, dividindo a cela com um gordão que acabou sendo liberado, já que não cabia mais naquele espaço apertado.
Agora sou um solitário perneta em um presídio de segurança máxima. Pelo menos a prisão não está sendo tão ruim assim, já que passei muito tempo no orfanato e já estava acostumado com as visitas inconvenientes no lado de trás.
Ela entrou em meu quarto, carregando um bolo de café (o dia começou bem, hein) e uma caixa de presente bem grande. Minha vozinha se aproximou da cama, cantando “parabéns-pra-você”, me oferecendo a caixa, a qual eu furiosamente desembrulhei. Lá dentro estava um filhote de pitbull extremamente fofo. Era tão lindinho que até tinha uma espuminha branca na boca. Ele parecia nervoso, mas ao ver minha vó, pulou de alegria e resolveu dar um beijo nela. Só que a intensidade foi tanta que acabou saindo sangue do pescoço dela.
O terrível bolo que ela segurava caiu, ainda com a vela acesa, na pilha de feno, incendiando quase que imediatamente o quarto inteiro, explodindo a coleção de pólvora de meu avô, que fez metade da casa explodir, junto com o pitbull, que acabou despedaçado na parede. A vizinha fofoqueira, Dona Hipotenusa, assistia tudo da janela e, antes que a coleção de dinamites do ano retrasado também fosse alcançada pelo incêndio que tomava conta da casa, correu para dentro e me buscou, em seus braços ossudos, me carregando pro lado de fora antes da casa ir para os ares. Eu nunca gostei de bolo de café.
Dona Hipotenusa já tinha seus filhos: os irmãos gêmeos siameses Seno, Cosseno e a recém-nascida Tangente. Não podia cuidar de mim também, então depois de ser rejeitado pela proprietária do salão de beleza local, Srta. Melanina, minha corajosa heroína, sempre muito crente, me colocou no Orfanato Pé do Filho, que também era extremamente religioso.
Ao contrário do que imaginava, ao invés de comer, rezar e amar, era o padre que me comia, rezava, mas não me amava. No primeiro dia de minha estadia no local, Padre Criptônio me flagrou tomando banho de porta aberta. Você sabe o resto. Desde então, passei a ser molestado diariamente.
Em um fatídico dia, Cauã Criptônio me levou para o armário do zelador e começou a fazer o que sabia fazer de melhor. Revoltado, durante o ato, agarrei uma furadeira elétrica. Quando consegui enfiar na tomada, ele também enfiou em mim. Pressionei o gatilho e botei a broca em suas... ferramentas, que começaram a vazar de tudo. O padre começou a gritar, atraindo os outros, que vieram correndo para ver o que se passava. Tranquei a porta e, para calar o homem, que tentava me impedir, fiz outro furo, dessa vez em sua orelha, de onde saíram pedaços de seu cérebro e muito, mas muito sangue. Não é que ele calou a boca?
Desesperados com a gritaria, os Padres Cádmio e Disprósio começaram a bater, esmurrar e jogar hóstias na porta. Eu tentei jogar o cadáver cheio de furos pelo basculante, mas entalou. Sem saber o que fazer, coloquei um saco de lixo sobre o corpo e, com uma caneta fosforescente que ali encontrei, escrevi as seguintes palavras: “Lixo tóxico. Não tocar, não carregar, não inalar nem nada”. Mas eu precisava explicar também porque todo aquele sangue. Não tinha outra opção: com uma machadinha que estava dando sopa numa das prateleiras, cortei meu dedo mindinho e abri a porta.
-Meu filho, o que aconteceu? – perguntou Cádmio, olhando para aquela cena atordoante.
-Eu cortei meu dedo sem querer.
-Mas o que raios você estava fazendo aqui?
-Brincando de índio. – respondi.
-Meu Deus, que desastre. Passa uma arnica, coloca um band-aid e boa noite, meu filho. – e, olhando para o Padre Disprósio, exorcista número um do orfanato, disse: - Amanhã é dia de levar o lixo tóxico para fora.
Fingi que voltei para cama, depois de estancar o sangue do dedo. Esperei os padres irem rezar a missa das duas da madrugada, voltando para o armário do zelador e cortando a prova do crime em pedacinhos com uma serra de ossos forense que encontrei ali mesmo no armário. O que será que o zelador andava fazendo com tudo isso? Então, atirei os restos mortais em cima de um carro branco que passava por ali. O motorista chamou a polícia, que chegou uns dez minutos depois, colocando um longo pano branco de seda, uma das mais finas de todo o Sri Lanka, para cobrir aquela nojeira e levar o que restou de meu molestador para o necrotério mais próximo. Analisaram os restos mortais de cima a baixo, e chegaram a conclusão chocante de que ele havia falecido, batido as botas, que eram lindas, por sinal: importadas das Filipinas, feitas com couro de dragão-de-komodo e manufaturadas por crianças escravizadas.
Os pedaços foram empacotados e transportados de helicóptero para o maquiador mais famoso e talentoso de toda Hollywood, para ter o rosto reconstruído, de acordo com o crânio quebrado, com a mais nova tecnologia 3D projetada especialmente para a ocasião. O maquiador trabalhou incansavelmente por 3 dias e 3 noites. Acaobou rejeitado pela esposa, que alegava que ele dava mais atenção ao trabalho do que ao seu relacionamento amoroso.
De qualquer forma, chegou à conclusão de que o rosto reconstruído era o do famoso ator Jack Nicholson. Assim que a notícia se espalhou pelo mundo inteiro, descobriram que o mesmo estava de férias em um cruzeiro de caridade nas Filipinas, ajudando o governo a substituir a mão-de-obra infantil escrava por aborígene.
Desolado, o grande maquiador resolveu roubar o que tivesse no defunto e fugir para o México, só que, em um dos bolsos de suas calças, foi achada uma carteira de identidade. O homem se suicidou depois dessa.
A investigação voltou para o orfanato assim que constataram de que o assassinado era o Padre Cauã Criptônio Jr.. Entrevistaram cada padre e freira, inclusive o Arcebispo da Paróquia. Vi e ouvi toda a cena por um buraco na fechadura da porta. Uma mulher gorda e negra, de cabelo curto e enrolado e aparência simpática, vestindo um terno feminino apertado demais para ela - o mesmo terninho que causava pânico nas crianças do orfanato, pois pensavam que se tratava de uma assistente social - sentava na cadeira de palha trançada oposta à escrivaninha de madeira de carvalho do Padre Cádmio, que oferecia água à policial enquanto sentava com cuidado, levantando a batina para não sentar nela.
-O que você deseja, Senhora...? Ou deveria dizer, Senhorita... – disse ele, que não conseguia parar de encarar os mamais, realçados pela vestimenta, de LeShawna, que se assemelhava muito à Queen Latifa.
-Qual foi a última vez que você viu o seu companheiro Criptonita? – partiu direto para o assunto.
-Criptônio. – corrigiu Cádmio, deixando escapar uma baba pelo canto da boca, enquanto ainda apreciava a vista.
-Você está bem? – perguntou LeShawna, limpando a baba da mão. – Olha, se você tiver tendo um derrame, só pra avisar que minha última experiência com derrames não foi tão boa, foi até meio engraçado, sabe, eu acabei me casando com um aborígene sem querer em um ritual típico australiano, sabe, mas aí um dia você não vai acreditar quem ligou para ele... O Jack Nicholson, convidando ele para fazer um negócio lá nos cinemas, eu não sei direito, mas... – o Padre retomou a consciência, desviando o olhar de seu virtuoso busto e a interrompeu, respondendo a pergunta:
-Eu o vi pela última vez quando o falecido, que Deus o tenha, estava levando um órfão novato para o armário do zelador...
-Por quê?
-É como um ritual de iniciação do nosso abrigo, mas isso não importa.
-Você sabe se o Padre tinha algum inimigo, ou algo do tipo?
-Todas as crianças do orfanato.
-Por quê?
-Por causa do ritual de iniciação...
Saíram da sala, sem me perceber, para o armário do zelador, onde a chefa de polícia, LeShawna achou dois quilos de dinamite.
-Ahm, Padre, esses dinamites... Vocês, aqui do orfanato, tem uma licença para estocar todos esses explosivos extremamente voláteis e perigosos no armário do zelador de um Abrigo Infantil recheado de bebês, crianças, pré-adolescentes e adolescentes em geral?
-Sim, claro, a autorização está ali do lado da pilha de feno.
-Essa?
-Não, a outra. É, essa. – e, enquanto a mulher tateava o piso de madeira em busca dos papéis, ela pegou e levantou, com sua luva de látex branca, um dedo decepado. Obviamente, meu dedo. Eu deveria ter jogado fora. Merda. A policial torceu a boca e apertou os olhos, perguntando, com nojo, de quem era o dedo.
-Ah, é de um garoto totalmente nada suspeito que veio para o orfanato depois de sua casa ser incendiada. Ele estava aqui com o padre, até então vivo, na noite do desastre. Ouvi um grito vindo daqui. A porta estava trancada, mas quando foi aberta, era só o garoto brincando de índio com uma machadinha nesse lugar, que estava completamente sujo de sangue e tinha um saco de lixo tóxico entalado no basculante. Pelo visto, o garoto se acidentou com a machadinha.
LeShawna apertou bem os olhos, olhou para cima, pensativa, depois olhou novamente para o dedo, lamentando:
-Tadinho.
Ao saírem do quarto, me encontraram no corredor. A policial esbarrou em mim e caí no chão. Ela se agachou, me olhando por inteiro, segurando aquele dedo sangrento, e falou para mim:
-Me desculpe, menininho. Coitado de você! Esse dedo é seu? – então, sem mais delongas, me entregou o mindinho e saiu andando. Quando estava prestes a entrar no carro, hesitou e voltou, provavelmente porque percebeu a idiotice. Montou uma sala de interrogação improvisada no próprio armário do zelador, o qual não aguentava mais esse bando de gente o tempo inteiro num espaço que deveria ser só dele. O telhado estava quase caindo porque ele não conseguia pegar nenhuma ferramenta há dias. – Por que você estava brincando de índio naquela fatídica noite? – perguntou ela, me olhando diretamente nos olhos, debruçada sobre a mesa, com os peitos quase em minha cara.
-Porque índios são legais.
-MENTIROSO! – e ela me deu um tapa na cara. – Perdão! É que eu estou tão acostumada a fazer isso que agi sem pensar antes. Bem, mas por que você estava brincando de índio na noite em que o padre foi assassinado?
-Bem, por acaso ago... - e ela me interrompeu com outro tapa:
-MENTIROSO! – logo depois se desculpou novamente. LeShawna, que estava, obviamente, com uma TPM braba, se debruçou novamente sobre a mesa, me olhando de um jeito assustador, como se ela estivesse encarando minha alma. Finalmente, disse: – Eu tenho quase certeza que foi você, eu sinto que... – peguei um taser, uma arma de choque que curiosamente estava por ali e a eletrocutei. Saí correndo pelo orfanato, fugindo dos policiais subordinados de LeShawna, Theodoro e Apolo, que vieram atrás de mim, ao perceberem meu comportamento esquisito. Passando pelo portão e pisando na calçada, observei que era dia do caminhão de lixo tóxico passar. Sem pensar muito, já que era o único veículo da avenida em movimento naquele instante, agarrei nas barras de metal da traseira e fui, agarrado, junto do automóvel.
A Avenida era reta, o que deu tempo para os tiras entrarem no carro e partirem a toda velocidade atrás do caminhão. Com medo, estendi minha mão no ar, para me proteger do carro que poderia acabar me acertando. Para minha surpresa, a radiação do lixo tóxico com o qual eu entrei em contato foi tão forte que me alterou, e um jato de lava saiu do meu pulso, em uma explosão, derretendo o para-brisa na face dos dois policiais. O carro explodiu e foi pelos ares, esmagando uma velhinha aleatória do outro lado da rua.
Bem, isso é o que eu gostaria que tivesse acontecido. Na verdade, o único “superpoder” que eu consegui entrando em contato com aquele lixo tóxico foi câncer na laringe. A parte da frente da viatura foi empurrada contra a parte de trás do caminhão, que freou bruscamente, esmagando todos os ossos e nervos possíveis de minha perna esquerda que estava para fora, partindo-a em duas, estourando, derramando medula óssea pelo asfalto. Os médicos não conseguiram salvar minha perna. Grande surpresa. Eles ainda confundiram o membro inferior saudável com o esmagado e acabaram amputando o direito também. De qualquer jeito, paraplégico e com dez anos de idade, fui enfiado em uma prisão para sempre, dividindo a cela com um gordão que acabou sendo liberado, já que não cabia mais naquele espaço apertado.
Agora sou um solitário perneta em um presídio de segurança máxima. Pelo menos a prisão não está sendo tão ruim assim, já que passei muito tempo no orfanato e já estava acostumado com as visitas inconvenientes no lado de trás.
Nenhum comentário:
Postar um comentário